Leitura Complementar:
A teoria do “mundo multipolar”
O mundo multipolar já existe, e se divide em três:
os Estados poderosos (G7), liderados pelos EUA; as empresas transnacionais
e os bancos; e a burocracia internacional que serve aos dois primeiros grupos.
O colapso
da União Soviética e a destruição do “sistema socialista” foram os
acontecimentos mais marcantes do fim do século 20. Puseram um fim ao mundo
bipolar e ao “equilíbrio do medo”, pilares de qualquer sistema de relações
internacionais a partir da segunda guerra mundial. A partir do começo dos anos
90, o mundo entra numa situação nova e transitória, marcada pela “fluidez” e
pela indeterminação: deixaram de existir muitas das antigas tendências, e as
novas demoram para se cristalizar.
Até o
momento falharam todas as tentativas de definir os fatores-chave do
desenvolvimento de um novo sistema de relações internacionais. Levantam-se
hipóteses, que merecem ser levadas em consideração, mas não permitem a
avaliação do conjunto de mudanças em curso, nem de sua direção. Dentre elas, a
da “multipolaridade”, a da “globalização”, a do “liberalismo”, a do “conflito
de civilizações”, a da “balcanização do planeta” e, evidentemente, a mais
célebre de todas, a do “fim da história”. Uma das teorias mais controversas é a
do “totalitarismo democrático global”, de Alexandre Zinoviev, que prevê um
mundo unipolar sob o controle de estruturas supranacionais. Entre as mais
recentes, encontramos a do “diálogo das culturas”, do presidente iraniano
Mohamed Khatami.
A hegemonia norte-americana
Nossa
atenção se deterá mais especificamente sobre uma dessas teorias: a do “mundo
multipolar”. Nascida no começo da década de 90 dos escombros do velho mundo,
foi defendida principalmente pelo ex-secretário de Estado norte-americano,
Henry Kissinger, como alternativa ao sistema bipolar, caído em desuso. No
entanto, os Estados Unidos logo se deram conta de que essa teoria representava
uma faca de dois gumes. Por isso, prontamente a abandonaram, tanto na prática
como na teoria, preferindo ações enérgicas que visavam consolidar o mundo
unipolar, como prova com eloqüência a guerra contra a República Federativa da
Iugoslávia, na primavera de 1999.
Os
adversários da hegemonia norte-americana afirmam que, para chegar ao seu
objetivo (praticamente alcançado) de dominação mundial, os Estados Unidos
lançam mão de um vasto arsenal de meios: fragmentação dos grandes Estados;
apoio, com esse fim, às minorias étnicas “discriminadas” de religião muçulmana;
recurso à ideologia dos “direitos humanos”, inclusive o direito de
auto-regulamentação nacional, para justificar guerras e intervenções
“humanitárias”.
A impotência da ONU
Diante
dessa realidade, a teoria de um mundo multipolar encontrou, em muitos países do
mundo, adeptos incomodados por esse comportamento dos Estados Unidos —
especialmente as elites políticas da China, França, Índia e Rússia. Esses
países avaliam que a adoção de certos aspectos de “multipolaridade” lhes
permitiria melhor defender seus interesses nacionais.
A
definição do conceito, no entanto, continua difícil. O que se entende por pólo:
países, regiões, alianças regionais, organizações internacionais,
multinacionais? E qual seria a esfera de competência de cada um, sua
subordinação hierárquica, sua arquitetura? Ainda que o Estado-nação,
independente e soberano, continue sendo a pedra de toque, sua própria concepção
evoluiu. O Estado-nação sofre ataques tanto de partidários quanto de
adversários do atual sistema de direito internacional, consagrado pela Carta da
Organização das Nações Unidas (ONU), como demonstram o número de países que
surgiram no mapa político mundial, as discussões acaloradas sobre as fronteiras
e os limites da soberania.
Os
críticos do atual status quo afirmam que o sistema da ONU torna-se cada vez
mais impotente devido à mudança da natureza dos Estados, da relação de forças
entre eles e do aparecimento de novos temas do direito internacional.
O surgimento de novos Estados
O
princípio de classificação dos Estados de acordo com seu potencial militar, e
especialmente nuclear, sofreu uma profunda erosão. De agora em diante é preciso
contar com os países que têm armas nucleares e mísseis, mas nem por isso são
tecnologicamente avançados ou ricos. Seu número crescente constitui uma fonte
de desestabilização. Dessa forma, o poderio militar crescente da Índia e do
Paquistão provoca uma corrida armamentista na região, especialmente no Irã. Se
os ocidentais tentaram se opor a essa evolução por meios puramente militares —
como no caso do Iraque —, seria impossível fazer o mesmo contra quaisquer
países sem incorrer no risco de provocar um conflito em que estes poderiam
recorrer a armas de destruição maciça. Essa hipótese parece ainda mais perigosa
porque esses países não desenvolveram sistemas de controle tão eficazes quanto
os Estados Unidos e a Rússia, e muitos deles não dispõem de sistemas políticos
avançados e estáveis.
Em
segundo lugar, como observava Pascal Boniface, diretor do Instituto de Relações
Internacionais e Estratégicas (Iris), os novos países se formam cada vez mais
pelo sistema de “gemiparidade”, divisão baseada em guerra e confrontos. Os
exemplos abundam: da Iugoslávia à Eritréia, passando por Timor-Leste.
Construídos sobre a base de uma só etnia ou de uma única religião,
freqüentemente os Estados assim criados são frágeis e não dispõem de todos os
atributos da soberania. Suas elites políticas se consolidam tanto com base no
nacionalismo, como em vínculos étnicos, tribais e religiosos. Sua adesão aos
ideais da democracia e do pluralismo parece meramente formal. Daí a tendência
ao conflito com vizinhos (Armênia e Azerbaijão) ou dentro do próprio país
(Moldávia e Geórgia). Essa concepção explica também, por exemplo, a expulsão
dos russos de determinadas repúblicas da antiga União Soviética. Os mesmos
processos, acentuados pelo fator tribal, caracterizam a África. E esses
fenômenos com freqüência se fazem acompanhar por uma “privatização” do Estado,
cujos aparelhos se vêem gangrenados pela máfia.
A evolução do sistema internacional
Devido à
sua fragilidade, essas entidades estatais voltam-se para os grandes centros de
poder, como os países da Europa ou os Estados Unidos. No entanto, o desejo de
se integrar, a qualquer custo, a estruturas mais desenvolvidas e estáveis não é
uma garantia de segurança. Pois estas, e especialmente a Organização do Tratado
do Atlântico Norte (Otan) não sabem resolver esse tipo de problema. Como
imaginar que a organização do exército da Polônia funcione tão bem quanto a do
Reino Unido, mesmo daqui a dez anos? Consciente desse limite, a aliança não se
apressa em admitir em suas fileiras os neófitos que a transformarão em
simulacro pouco viável. Sua palavra de ordem — “portas abertas para a Otan” —
visa sobretudo a assegurar um controle político sobre os “candidatos” e
garantir sua lealdade, como pudemos ver por ocasião dos bombardeios da
Iugoslávia.
Será que
essa evolução reforça os sistemas de relações internacionais, os mecanismos
existentes de manutenção da paz e da segurança internacionais? Deveria a comunidade
internacional apoiar a emergência de entidades estatais, por exemplo, em
Kosovo, se elas se formam baseando-se em particularidades lingüísticas,
culturais e religiosas; na aspiração a um Estado de etnia pura; ou simplesmente
no desejo das elites nacionais de obter seus próprios aviões, mansões,
embaixadas etc.?
Reféns das multinacionais
Os
“velhos” Estados-nações também perdem certos atributos da soberania, seja por
processos de integração, como no caso da União Européia, seja pela aceleração
da globalização, com as grandes empresas que tendem a perder suas feições
nacionais. Em princípio, quatro ou cinco companhias do tipo “Boeing”,
“Microsoft”, “Martin-Mariette” ou “Shell” podem impor suas vontades a qualquer
governo, especialmente no Terceiro Mundo.
O Mar
Cáspio oferece um exemplo impressionante de todas essas contradições. Os
Estados da Ásia Central e o Azerbaijão aspiram ao desenvolvimento de seus
recursos naturais, mas não têm meios para isso. Tornam-se então reféns, por um
lado, das grandes multinacionais e, por outro, dos Estados Unidos.
O exemplo de Seattle
É claro
que essa situação não é totalmente nova. Nova é a amplitude do movimento e a
completa ausência de um contrapeso capaz de resistir aos interesses dos
colossos econômicos. E também a completa ausência de uma alternativa para
Estados pequenos e médios, completamente dependentes das grandes empresas, que
escolhem quando, onde, como e a que ritmo investir seus fundos gigantescos.
Essas decisões geralmente obedecem não às recomendações do FMI ou ao “clima”
dos negócios, mas às prioridades e padrões de comportamento das maiores
companhias, regiões demarcadas e governos “amigos”. Ora, essas empresas
transnacionais não respondem por seus atos diante de ninguém, exceto seus
acionistas. Seus investimentos não levam em conta o nível de democratização,
mas sua estabilidade. Por exemplo a China, ideologicamente estrangeira, mas
estável, e por isso digna de acolher os capitais. Ou a Tunísia, simultaneamente
autoritária e estável.
Por outro
lado, muitas organizações internacionais, que agem, em princípio, sob o
controle dos governos, operam cada vez mais à base de esquemas burocráticos
fechados, que não refletem toda a gama de opiniões e de interesses dos seus
membros. O que o balanço da reunião da OMC em Seattle prova de forma gritante.
Os novos centros do poder econômico
Inevitável,
a globalização provoca simultaneamente novas fraturas e desestabiliza
profundamente o sistema de relações internacionais, por falta de novos
mecanismos de controle. É lógico que a abertura dos mercados de países antes
fechados e o livre fluxo de capitais aceleram o desenvolvimento econômico do
mundo. Ao mesmo tempo, porém, levam para o âmbito internacional, e
inter-estatal, as contradições econômicas do âmbito nacional. A diferença entre
países ricos e pobres alcança proporções sem precedentes e as desigualdades
internas se aprofundam. A metade dos investimentos em escala global, estimados
em cerca de 160 bilhões de dólares por ano, se concentra num punhado de países
— China, México e Brasil.
Paralelamente,
os centros que tomam decisões econômicas e financeiras não são mais os que
fazem as opções militares. Os Estados podem iniciar e terminar guerras, assinar
tratados de paz e alianças. Mas mostram-se cada vez menos capazes (exceto
talvez os Estados Unidos) de controlar os fluxos financeiros e a transferência
de tecnologias, a difusão da informação. Institucionalmente separados do
sistema de relações internacionais, os novos centros de poder econômico agem
fora de qualquer controle democrático.
O déficit dos EUA na ONU
O mundo
multipolar já existe, mas difere daquele sonhado pelos dirigentes políticos
europeus e não europeus. Ele se divide em três: os Estados poderosos (G7), que
têm força econômica, financeira e militar, grupo incontestavelmente liderado
pelos Estados Unidos; as empresas transnacionais e os bancos; e finalmente a
burocracia internacional (ONU, União Européia, FMI, Banco Mundial), que serve,
de um lado, aos interesses dos países mais ricos e fortes, e do outro, aos
interesses das empresas transnacionais.
Essa
tríade mundial não se inscreve no esquema da ONU de “Estados soberanos”. Seria
eficaz? Reforçaria o sistema de relações internacionais? Responderia à vontade
dos povos? É de se duvidar, especialmente quando se constata que doações
privadas (o famoso bilhão de dólares de Ted Turner) cobrem o déficit
orçamentário da ONU, e que o Estado mais rico do mundo não tem fundos para
financiar as operações de manutenção da paz de importância crucial na República
Democrática do Congo, ou mesmo em Kosovo.
Operações militares “cirúrgicas”
Por outro
lado, o aprofundamento e a expansão dessas tendências, bem como a
irresponsabilidade da nova elite mundial, representada pelos principais
consórcios e holdings internacionais, suscitam contradições que a comunidade
internacional não consegue superar com seus instrumentos atuais. Tais
tendências seriam portanto fatais ou irreversíveis? Não: se os atores
internacionais dessem prova de sua vontade política e manifestassem o desejo de
assumir os compromissos necessários, poderiam revertê-las.
Uma
enorme responsabilidade cabe, um primeiro lugar, aos Estados Unidos, único país
capaz de estabilizar o sistema de relações internacionais ou, pelo menos, não
minar os frágeis equilíbrios existentes. Washington deveria refletir sobre a
necessidade de renunciar a operações militares “cirúrgicas” e a sanções totais:
nenhuma das duas teve resultados convincentes, no Iraque ou em Kosovo.
Um Parlamento Mundial
A busca
de vantagens estratégicas militares pelos EUA, e particularmente sua decisão de
renegar o tratado ABM, não ajuda a superar os desequilíbrios críticos. A ONU,
embora seja um órgão frágil, criticado e doente, ainda assim é única no seu
gênero universal: permite que todos os países se manifestem e troquem suas
opiniões, elaborando amplos compromissos multilaterais. Basta lembrar as
conseqüências da destruição da Sociedade das Nações, às vésperas da segunda
guerra mundial. É por isso que as Nações Unidas deveriam integrar o atual G7
aos mecanismos existentes de manutenção da paz e da estabilidade.
Seria
também necessário reforçar as agências especializadas da ONU de perfil
sócio-econômico. Algumas dessas organizações poderiam também se dedicar a
problemas ligados às atividades de empresas transnacionais e à instauração de
um controle sobre suas atividades. Essas idéias começam a tomar corpo no
Ocidente. É o que prova um artigo recente que propõe a nomeação de
representantes mundiais junto a agências especializadas das Nações Unidas para
temas sensíveis (meio ambiente, saúde, transporte, direitos humanos
etc. [1]). Outro sinal: o projeto de um Parlamento Mundial, cujos membros
seriam eleitos pelos Parlamentos Nacionais, e ao qual seria atribuído um papel
de propor, fiscalizar e consulta.
A teoria
do “mundo multipolar”. Olivier Giscard d’Estaing, Le Figaro, 22 de março de
2000. Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-teoria-do-mundo-multipolar/
. Acesso: 19_02_2020.
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